sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016


IR ALÉM

Muitos dias e a mesma situação:
Atirado ao asfalto
O porta-retratos vazio.
Oferecia a imagem ausente
Que se furtava
E ainda boiava
Na água das chuvas.
E se fosse aquela pessoa senil
Que vi como um cão
De patas feridas?
Este haveria de sofrer ainda mais dores
Por minhas mãos,
Desde os cacos de vidro?
A mordedura na visita do medo,
Ele não saberia por quê.
Quando o céu desanuviasse em sonhos,
Livre correria nos gramados abertos.
No porta-retratos, eu seria o que
Em meu inelutável vazio?

PERFIL REVISITADO - dez. 15
ao Pedro, meu filho

Contente às vezes, deprimido com o que vejo e fico sabendo em outras; indiferente em relação àquilo sobre que a maioria se debruça; perseguidor, dentre minhas aptidões e percepções, de justiça no miúdo cotidiano - para o grande, sou pequeno; cultivador da liberdade plena de espírito; cooperativo quando há oportunidade e solicitação; contente às vezes, deprimido em outras; solitário por vocação; delicado e cortês no trato; ácido ou agressivo se de álcool abuso; intenso no que sinto; observador atento e silencioso, pensativo permanente.

Avesso a hordas e manadas de quaisquer espécies, mas amo as vaquinhas no pasto; não compareço a eventos que impliquem ajuntamentos humanos; refratário a modismos vários, panelas, tribos e patotas - o que me pôs longe de estabelecimentos etílicos ruidosos, de comidinhas e encontros regulares (Vila Madalena? Argh!); antissocial quando se trata de adesões e ativismos, não abraço causas, desconfio, duvido; nenhuma fé ou crença religiosa, mas curioso sobre religiões como expressão da cultura humana; leitor compulsivo (apaixonado por livros), escritor e desenhista amador - a fotografia e a culinária ficaram no passado, imaginoso em permanente fantasia ; interessadíssimo em arte. Vivo muito só e gosto.

Atividade física é caminhar; quando possível, nadar - academias de ginástica são dos lugares mais sinistros; irascível com a força bruta, crítico permanente da instrumentalização do corpo - o trabalho assalariado já é suficientemente embrutecedor. Feliz? Não. Felicidade? O que é isso senão uma bobagem ignorante e egoísta, sem base no correr da vida, uma mistificação, o véu ilusório da ignorância - olhe em torno, pense no outro. Saia da ilha da fantasia. De outro modo, tenha vergonha na cara.

Dificuldade em desvencilhar-me de hábitos arraigados; organizadíssimo para, em seguida, desarrumar-me e a tudo em volta; depois, o penoso retorno à ordem, numa circularidade indesejada, aparentemente interminável - Sísifo. Se me distrair, estou colecionando bobagens. Intolerância crescente com o desprezo pela civilidade urbana nas metrópoles - a deseducação das pessoas nos espaços públicos, daí o recolhimento também crescente - no Brasil, a rua tornou-se o inferno; há muito, denuncio a barbárie avassaladora. Indignação com a política tal como a praticada aqui e acolá, de ponta a ponta - nenhum vínculo ou pertencimento partidário, nunca - o velho "pensar com a própria cabeça".

Contente às vezes, deprimido em outras. Tido como ranzinza, entretanto, bem humorado e brincalhão, mas... Persigo a conversa elegante, educada, nem sempre ao alcance nos dias que correm - falar pouco, baixo e tratar com carinho a língua. Fidalguia ao relacionar-se, urbanidade em todas as situações possíveis. Coisa muito difícil no patoá da manada (vocabulário de 500 palavras no máximo; não é, mano?) - paisinho de apedeutas ágrafos.

 Quase ninguém mais sabe ou quer ouvir e desaprendem a falar, gritam e vociferam palavrões a esmo.  Pelas bocas, jorra esgoto. Sentenciam sem julgamento ou julgam de modo sumário e burro. A vida dos outros me interessa muito pouco, quase nada, a não ser aquela dos mais íntimos, por isso o fuxico me parece, dos atos verbais corriqueiros, coisa repugnante.

Entedio-me com facilidade (um sofrimento). Blindado para melindres, ouvidor tranquilo de críticas (que, em geral, para mim, não trazem novidades - não escondo defeitos, os carrego), indiferente a elogios; sem ódio em geladeira, severo com meus próprios escorregões e um olhar agudo, involuntário para defeitos, mazelas, incorreções e ruindades alheias. Para os objetos feitos também. Um sofrimento. Não sei se meu desprezo pelo ser humano me protege ou me aliena, mas ele é um fato; prefiro os animais em boa hora. Quero entender e conhecer, fracasso. Vivo cansado de mim.

Como bem, durmo pouco e cultivo uma boa preguiça. Cuido de mim, sem ajuda doméstica de nenhuma espécie. Até agora - 65 anos. Odeio telefones e maquinas em geral. Amo o silêncio (bem inexistente), o sossego e deixem-me em meu canto; à maneira de Caymmi :"podem ir, que não vou". Mas não me furto a um convite simpático para um lugar e companhia interessantes (bens raríssimos).

Gosto, à beira do encantamento, do mar aberto, sem banhistas certamente. Ele dá a exata medida de minha insignificância e ganho a sensata noção de meus limites - a coisa mais parecida ao rezar é observá-lo sozinho no início da manhã, quando o tenho por perto. O muito grande que não me humilha ao diminuir e serve para aplacar as tolas angústias constituintes do homem. Tal como o deserto, mas este não conheço nem conhecerei. A religião de nada me serve, a beleza de um passarinho sim. Se quer saber como me relaciono com a morte, faço uso de uma citação: “A morte é um momento, e da minha vida não há de roubar mais do que isso: o seu momento”.*

O que não sei me afaga, o que julgo saber me inquieta. Nesse quesito como no anterior, sou um homem apaziguado. Alegre às vezes, melancólico quase sempre.

*Da mãe de Francisco Daut (colunista da Folha de S. Paulo) , cujo nome desconheço.


Antônio Rebouças Falcão