quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017


SENILITUDE

Velhice é interioridade que se amplia para o vazio. Uma idade muito avançada parece caracterizar-se pela penetração numa sala vazia cujas paredes são povoadas por sucessivas gavetas, nas quais estão recolhidos eventos remotos e medianamente antigos. 

A vida interior do velho se dá pelo abrir aleatório de qualquer uma dessas gavetas e narrar, para si ou para interlocutor, o evento escolhido ou que escapou espontaneamente. Como o número de gavetas é limitado, as evocações tendem a repetir-se.

Nessa sala desprovida de móveis, objetos e pessoas, há unicamente o si no escuro silêncio das gavetas. O si de si assemelha-se a um pântano em que o velho está mergulhado, e estará progressivamente mais e mais afundado. A memória dos fatos recentes é muito rala; às vezes, desaparece, porque não existem recintos para armanezá-los.


A morte natural é um afundar-se definitivo no mais íntimo de si, de onde não haverá retorno; de olhos abertos ou fechados; acordado ou dormindo num sonho que não mais poderá ser lembrado ou narrado e, assim, todas as gavetas estarão, para sempre, lacradas. O enterro ou a cremação é a forma que os homens têm para demolir aquela sala das gavetas, para secar aquele pântano dos mergulhos. Restará aos descendentes simulacro dos eventos memoráveis, num arremedo de biografia oral, a maneira que o velho teve de não desaparecer em sua sobrevida. O si de si é muito esperto.

Nenhum comentário: